Foto: Edwin Hooper

Aprendizagem depois do susto: decantando o pós-empolgação (ou o pós-desespero).

Clara Bomfin Cecchini
10 min readJun 29, 2020

--

No último dia 25 de junho, a convite do Fabiano Virginio do Centro de Inovação do Istituto Europeo di Design, participei do Webinar Nova Amplitude Das Soluções Digitais Pós 2020, que faz parte do Ciclo de Webinars IED RE_START.

Foi uma conversa estimulante com pessoas que admiro muito: Caio Vassão, Shana Wajntraub, Francisco Albuquerque, além do próprio Fabiano.

A provocação que guiou minha participação foi:

quais novos hábitos a crise atual nos deixará para o futuro, em termos de aprendizagem?

Eu AMO tecnologia e as novas possibilidades de acesso e mesmo construção de conhecimento que ela proporciona. Mas percebo que acontece um oportunismo multifacetado nesse campo, que abusa do charme das tecnologias para maquiar soluções simplórias para problemas complexos: desde a ideia que vira e mexe volta da implantação de EaD na educação básica para além da pandemia (estejamos atentos!) até provedores de educação corporativa que se propõem a “resolver a questão das habilidades do futuro”.

A minha implicância confessa com o consumo sem crítica de novos formatos foi colocada à prova.

Porque a ideia não era falar da essência da aprendizagem — o que não muda — mas falar do que muda, e o que podemos aprender daí. Porque muita coisa está mudando, e isso não temos como negar. Há oportunidades. Quem bom que pude pensar sobre isso!

Levantei alguns pontos que compartilhei no dia 25, e aproveito para publicar aqui. São tópicos que guiaram a conversa, com alguns links de referência… algumas coisas acabei nem falando lá no dia. Vale como registro, para diálogo e evolução.

Se quiser ver o webinar, está no link: https://www.youtube.com/watch?v=KltEtPuUh0I&feature=youtu.be

Vamos ponto a ponto.

PONTO 1: Estamos em pleno processo de transformação, ainda sem ter certeza do que vai emergir e se estabelecer: observamos tendências, acompanhamos acontecimentos, percebemos acelerações. Mas a frase que já virou chavão de que “a crise acelerou transformações já em andamento, e que estamos em um novo normal” não ajuda em nada a pensar sobre aprendizagem.

Primeiro, porque dá uma impressão de linearidade — estávamos a caminho de um ponto conhecido, só o que muda é que agora vamos mais rápido. Não é verdade. Não estávamos indo rumo a um ponto conhecido, estávamos caminhando dentro de um campo de possibilidades vislumbradas. E agora estamos vivendo uma situação nunca imaginada pela maioria de nós. Prevista por especialistas, mas com novos desdobramentos surpresa em áreas diferentes a todo tempo.

Então, tudo bem você não achar que está normal. Querer estar normal só gera mais e mais ansiedade — ainda mais com a pressão de ter que ser este “novo normal”, e não aquele normal anterior.

Aliás, esta palavra “normal” merece uma reflexão só para ela…

Mas, sem querer problematizar aqui, quando falamos em aprendizagem é importante reconhecer que estamos em plena construção de algo — e que o aprendiz será um participante desse processo, e não apenas um consumidor do conhecimento de um suposto “mundo transformado”.

Mas afinal o que a intensificação do digital revelou e que podemos levar para o futuro?

Da perspectiva do aprendiz

PONTO 2: Intenção no uso da atenção. Nossa relação com o tempo. Tempo não é dinheiro, tempo é vida — alocar com consciência a atenção é assumir a autoria de nossa vida e sair da posição de reação apenas.

Aprender não é apenas olhar para o futuro — aprender para compreender e atuar no presente. Este presente que é, ao mesmo tempo, uma sobrecarga de estímulos e demandas. Fica fácil se perder aí.

Vivendo intensivamente o digital, mais do que nunca corremos o risco de sermos pautados pela dinâmica da dopamina

“Os laços baseados em feedbacks rápidos e cheios de dopamina estão dilacerando a sociedade” — Chamath Palihapitiya, que ocupou o cargo de vice-presidente para o crescimento de usuários, 2017. https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2017/12/ex-executivo-do-facebook-diz-que-redes-sociais-estao-destruindo-sociedade.html

Estar no digital e sair dessa dinâmica é um desafio ainda maior do que quando estamos em situações sociais. O presencial organiza a nossa atenção.

PONTO 3: Aprender não é consumir: na primeira semana de isolamento, muitos dos provedores de conteúdo já tinham as respostas para “os desafios do home office”; e a receita para construir “equipes de alta performance a distância”.

É preciso ter em mente que o mercado está disputando a sua atenção — e vai jogar com a sua ansiedade, deixando sempre aquela pontinha de pânico de estar perdendo algo e ficando pra trás.

É essencial ter cuidado com as calorias vazias. Aqueles conteúdos que consomem nossa atenção mas não nos acrescentam nenhum nutriente. Não significa restringir interesses, mas perceber que a todo tempo estamos sendo assediados por essa dinâmica, esse ambiente que gera na gente a sensação de insuficiência permanente — não daquele jeito bom e estimulante, mas daquele jeito “meio” desesperador.

Neste momento, é importante perceber que a aprendizagem digital se dá nos mesmo ambiente ou fluxo em que consumimos informações.

Ficamos influenciados pela infodemia: “À medida que a pandemia se espalha, dá origem também a uma segunda pandemia de desinformação, desde conselhos prejudiciais à saúde até teorias conspiratórias ferozes”. Secretário Geral da ONU Antonio Guterres, 30/04/2020.

Estamos em meio a isso em relação à Pandemia, fake news, excesso de notícias ruins, e esses estímulos invadem nossos processos de aprendizagem. https://nacoesunidas.org/no-dia-da-liberdade-de-imprensa-onu-pede-apoio-a-trabalhadores-da-midia-em-meio-a-pandemia/

O mercado está fervilhando. Somos muito assediados para assumir o lugar de consumidores. Jogam com nossa ansiedade, precisamos ter cuidado.

Não existe aprendizagem sem esforço, mesmo que seja assistindo ao um vídeo. Se prometem algo muito fácil ou uma solução definitiva, desconfie — além disso não existir, a chance de vir um conteúdo de baixa qualidade após um anúncio deste é grande! Pode ser caloria vazia. :(

PONTO 4: Sair do filtro-bolha, educar seus algoritmos de forma que você acesse coisas que não gosta mas gostaria de gostar (lema da vida que aprendi com Kevin Kelly em seu capítulo Filtrar, no livro Inevitável). Alimentar a própria curiosidade. Educar seus filtros para que te levem para onde você gostaria de ir, e agir para bloquear aqueles que roubam sua atenção. Sabe aquela frase “clique aqui para não receber estes emails”? Use mais. Sabe aquele jornalista que você admira? Procure segui-lo. É fácil fácil, e funciona que é uma beleza.

PONTO 5: A aprendizagem é multidirecional: o aprendiz do presente e do futuro, além de ser autor do uso de sua própria atenção, colabora para criar ambientes em que mais pessoas aprendam, construam juntas conhecimento. Sintetiza e dissemina aprendizados. É um pesquisador obstinado, vai buscar conhecimentos novos e testa novas soluções para atuais problemas. Levanta sempre a dúvida de forma construtiva — a partir da desconstrução se necessário.

Derruba as certezas mantendo o fluxo do conhecimento. Cria oportunidades de transdisciplinaridade, encontro com a diversidade e diálogos.

Se a maioria de nós já compreende que a comunicação é essencial para qualquer profissional, em breve compreenderemos que a aprendizagem também o é.

Estando isolados, com convivência apenas no digital, todas essas dinâmicas dependem de cada um de nós — em resumo, sustentar uma cultura da aprendizagem em nossos grupos e equipes.

PONTO 6: Aprender para trabalhar ou trabalhar para aprender?

Já é corrente nos estudos e relatórios sobre o futuro do trabalho que cada vez mais trabalho e aprendizagem estarão conectados. Alguns inclusives falam da mudança de aprender para trabalhar para trabalhar para aprender.

Josh Bersin, fundador da Bersin, pesquisador e consultor internacional em temas de Recursos Humanos, publicou em novembro de 2018 os resultados de uma pesquisa sobre aprendizagem e trabalho, realizada em parceria com o LinkedIn (2.400 respondentes). Em resumo, a conclusão da pesquisa foi: “se você realmente quer gostar do seu trabalho, passe mais tempo aprendendo ”. Quanto mais você aprende, mais feliz se torna no trabalho, diz Bersin.

Essa pesquisa revelou que o que mais inspira os profissionais é, em primeiro lugar, a natureza do trabalho em si (26%) e, em segundo, a oportunidade de aprender (19%).

Destaque-se que em algumas regiões e países a oportunidade de aprender aparece em primeiro lugar — Brasil entre eles. Entre as razões para se deixar um emprego, a de maior expressão é a impossibilidade de aprender, com 20% das respostas. Porém, o mais impressionante da pesquisa é a relação entre o número de horas dedicadas à aprendizagem e outros fatores que envolvem a atuação profissional. Para poder fazer essa análise, os respondentes foram classificados quanto ao tempo dedicado: 47% das pessoas foram consideradas medium learners, respondendo dedicar entre 1 e 5 horas à aprendizagem; 46% são light learners, com menos de 1h; 7% são heavy learners, com mais de 5 horas dedicadas.

Os heavy learners, em comparação aos light learners, têm 74% mais de probabilidade de saber onde querem chegar com suas carreiras; 48% mais de probabilidade de verem propósito no trabalho; 39% mais de probabilidade de se sentirem produtivos e bem-sucedidos; 23% mais de probabilidade de assumirem maiores responsabilidades. Entre outros fatores.

https://www.linkedin.com/pulse/want-happy-work-spend-time-learning-josh-bersin/

Aprender no trabalho não é fazer treinamento!!!

Então lente que precisamos mudar é essa: aprender é parte essencial de nossa vida, precisamos nos reconectar ao significado disso, nos livrar dessa ideia de que estudamos pra passar no vestibular.

“Aqueles que trabalham muito duro ao longo de sua carreira, mas não ‘perdem tempo’ para aprender constantemente, serão o novo grupo “de risco”. (…) Trabalhar duro era a abordagem certa na era industrial para progredir. Aprender duro é o equivalente à nova economia de conhecimento que atravessamos.”

A Regra das 5 Horas , Michael Simmons, trad. André Crevi. https://medium.com/@crevilaro/regra-das-5-horas-se-você-não-está-gastando-5-horas-por-semana-para-aprender-você-está-sendo-6b26f4438bf1

Da perspectiva de quem promove a aprendizagem

PONTO 7: Design de aprendizagem. Planejar educação e educar é uma atividade com uma técnica e conhecimento específicos. O planejamento que percebemos essencial ao digital vai influenciar o presencial. O digital tem muitas formas, nem todas possibilitam escala.

O blended learning veio para ficar, e não tem porque pensar em uma oposição presencial versus a distância. E nem presencial / a distância / presencial / a distância — como uma sequência de eventos. Pensar a experiência é fundamental. Aprendizagem é fluxo, um design de aprendizagem precisa sustentar esse fluxo combinando múltiplas abordagens.

A aprendizagem no fluxo da vida. Isso com certeza vai mudar a forma de pensar o presencial — mas jamais podemos ser taxativos de que uma coisa vai substituir a outra. O cinema não acabou com o teatro e nem a TV acabou com o cinema. Mas aumentaram as possibilidades para os espectadores, mudaram suas expectativas. Cada novidade reposiciona suas antecessoras.

Impensável uma instituição de ensino não ter uma preparação para entrega online. Mesmo que continue essencialmente presencial.

PONTO 8: Acolhimento e encontros: humanização da tecnologia. Aprender envolve sentimento e emoção. Medos e angústias. E ansiedade. Pelo momento de crise que estamos vivendo, a importância dos afetos no momento de aprender ficou mais evidente, e o fato de estarmos longe fisicamente demandou uma atenção especial para isso. Espero que possamos levar adiante esse aprendizado. A ideia de “deixar os problemas lá fora” não combina com o mundo complexo que vivemos.

PONTO 9: Digital não é sinônimo de democratização: (obrigada mais uma vez ao Valdir Souza Jr. pela pergunta que me deu a oportunidade de entrar neste tema no Webinar!) o acesso à tecnologia e conexão é muito desigual e isso precisa ser pensado por quem planeja. É a primeira recomendação da UNESCO: “Examine the readiness and choose the most relevant tools”. https://en.unesco.org/news/covid-19-10-recommendations-plan-distance-learning-solutions

Além da tecnologia, muitas casas brasileiras não possuem condições básicas para que uma criança estude. Trechos de uma reportagem do G1 de maio de 2020.

Imagem compartilhada comigo pela amiga Valquíria Cabral. Não consegui localizar a fonte… se alguém souber me fala?

. “Segundo dados do levantamento “TIC Domicílios 2019”, formulado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), aproximadamente 30% dos lares no Brasil não têm acesso à internet. O estudo mostra, inclusive, que há uma diferença significativa entre as classes sociais: em famílias cuja renda é de até um salário mínimo, metade não consegue navegar na rede em casa. Na classe A, apenas 1% não tem conexão.(…)

. As pesquisas evidenciam também outras dificuldades:

  • casas sem espaço para estudar e sem saneamento básico;
  • falta de equipamentos como computadores e notebooks;
  • problemas na conexão à internet;
  • falta de formação dos professores para usar tecnologia na educação;
  • baixos índices de leitura.

. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018 (Pnad), do IBGE, 17,3% das crianças de 0 a 14 anos moram em residências que não têm acesso à rede geral de abastecimento de água e 40,8%, em locais sem conexão com o sistema de esgoto.

. Nas casas em que não há internet, as condições de saneamento são ainda piores: 29,3% sem rede de água e 60%, sem a de esgoto”.

https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/05/26/66percent-dos-brasileiros-de-9-a-17-anos-nao-acessam-a-internet-em-casa-veja-numeros-que-mostram-dificuldades-no-ensino-a-distancia.ghtml

Por isso, qualquer fala sobre aprendizagem no contexto atual precisa de um olhar extremamente crítico.

Não podemos pensar em termos evolucionistas ou cronológicos. Um relatório de 2018 do Banco Mundial demonstra que mais recentemente os países têm resolvido questões educacionais bem mais rápido do que antes.

Os Estados Unidos levaram 40 anos (de 1870 a 1910) para aumentar a matrícula de meninas de 57% para 88%. Já o Marrocos alcançou um aumento semelhante em apenas 11 anos. O número de anos de escolaridade, por sua vez, mais do que triplicou nos países em desenvolvimento entre 1950 e 2010, passando de 2 para 7,2 anos (considerando o adulto médio). A maioria das lacunas no número de matrículas no ensino básico está diminuindo nos países, sejam eles de alta ou baixa renda média. Em 2008, as nações de baixa renda média já estavam matriculando estudantes na escola primária quase na mesma proporção que os países de alta renda média.

World Bank. 2018. World Development Report 2018: Learning to Realize Education’s Promise. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978–1–4648–1096–1. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO. https://www.worldbank.org/en/publication/wdr2018

Mas estamos falando de escolarização, o que é muito diferente de aprendizagem. A humanidade possui recursos para democratizar a aprendizagem, mas este problema está muito longe de ser resolvido.

Cabe a cada um de nós ser incansável na busca de melhorar este cenário.

--

--