Foto de Ahmad Odeh. Ramallah, Dance of Soul. Imagem Unsplash.

Aprendizagem é fluxo. Como faz pra fluir?

Clara Bomfin Cecchini
9 min readJul 15, 2020

Não sei como é para vocês, mas muitas vezes eu me sinto “desamparada” quando falamos do tamanho das mudanças em curso. Já entendemos que nossos referenciais não valem mais… mas quais são os novos?

Essa resposta está em construção permanente, claro. Então, vou dedicar este artigo a duas referências que me ajudaram a dar um pouco de sentido para todo este movimento.

E compartilhar as conexões que fiz entre elas, relacionando-as aos desafios de aprender no mundo de hoje e do futuro.

Inevitável é o flow; o flow inevitável é.

A fonte inesgotável de insights. O livro das conexões infinitas. Este é Inevitável para mim.

Kevin Kelly é cofundador da revista Wired, autor de diversos livros e referência em tecnologia e futuro. Em Inevitável: as 12 forças tecnológicas que mudarão nosso mundo, de 2015, Kelly nos conduz pelas transformações que antevê para os próximos 30 anos. Não é uma abordagem factual. São 12 verbos ou “ações aceleradoras”, organizadas para nos ajudar a compreender a raiz da mudança digital e recebê-la de braços abertos.

Fonte inesgotável de insights.

“No mundo digital, nada é estático ou fixo. Tudo está em processo de vir a ser”

“Tudo está em fluxo. Nada está concluído. Nada está feito. Essa mudança sem fim constitui o eixo central do mundo moderno. Esse fluxo constante não implica simplesmente que ‘as coisas serão diferentes’, e sim que os processos — os impulsionadores do fluxo — são hoje mais importantes do que os produtos.”

Lifelong learning, learning in the flow of life e learning in the flow of work — em todos esses termos está embutida a ideia de flow, fluxo, processo contínuo. Mas até ler o livro Inevitável, eu não tinha real entendimento do quanto a ideia de fluxo ganhou nova dimensão em nossa época. Dimensão essa que irá permanecer, pelo menos até onde nossos olhos conseguem enxergar.

Isso muda o que fazemos hoje, não só no que precisamos fazer de novo, mas para o que devemos deixar de fazer; deixar de aspirar; deixar de buscar.

Kevin Kelly em sua foto na Wikipedia

Precisamos estar atentos para que os verbos que nos guiavam até agora — “executar”, “acumular”, “controlar” — não nos impeçam de “fluir”, “compartilhar”, “remixar”, “participar” deste novo movimento. Sim, vivemos muitos tempos ao mesmo tempo, e esses dois paradigmas coexistem. Mas os verbos da era passada e nossa educação não podem nos impedir de enxergar os verbos que guiarão o mundo daqui para frente.

Para Kevin Kelly, seremos “eternos novatos”, mas não precisamos ser cegos:

“Com esforço e imaginação, podemos nos livrar dos antolhos que nos limitam a visão e aprender a discernir com alguma clareza o que está por vir”.

Porque não adianta aprender novos conteúdos se não compreendemos as novas formas de conectá-los e colocá-los em prática.

Está claro que simplesmente aprender “mais coisas” não é o caminho. Não haverá um “tudo” a saber, portanto buscá-lo não faz sentido algum . É necessário mudar nosso entendimento do que é aprender, conectando-o a esse novo contexto.

Ser um aprendiz nos dias de hoje é aprender constantemente, mas não só isso. É aprender diferente: em rede e fazendo da aprendizagem um processo constante não apenas para si, mas para o ambiente (fazendo parte do fluir, do tornar-se, como diz Kelly).

É uma nova cultura de aprendizagem. Na qual a autonomia é fundamental, mas não pode se confundir com individualismo e nos alijar desse contexto hiperconectado e fluido.

O learning in the flow of work / of life é algo que se dá na ação e na relação, mesmo que o fenômeno da aprendizagem, em si, aconteça sempre em nível individual (a rigor ninguém ensina ninguém, é sempre alguém que aprende).

A compreensão de que a aprendizagem relevante para o dia de hoje não é unidirecional (“um momento em que algo ou alguém me ensina, e eu aprendo”) ou bidirecional (“um momento em que eu ensino enquanto também aprendo, e vice-versa”), mas multidirecional e em rede (“um processo em que aprendo quando crio um ambiente de aprendizagem, em que todos aprendem, inclusive de formas imprevistas”) é uma das mais valiosas para todos nós. E eu só entendi que essa é uma dimensão inevitável ao ler o livro do Kevin Kelly e pensar como a aprendizagem se insere nesse universo.

Esse processo pode comportar momentos de aprendizagem individual, de relação ensino-aprendizagem, de vinculação a uma instituição, mas a aprendizagem em rede é a que a se sustenta ao longo da vida, conectada à vida. Neste sentido, compreendemos que os profissionais precisam tornar-se agentes do conhecimento, estejam onde estiverem. Dentro ou fora das organizações; em vínculos tradicionais ou novas formas de trabalho; em mercados estabelecidos ou emergentes.

Agentes do verbo agir, dando movimento e existência real ao conhecimento e à aprendizagem no dia a dia do trabalho e da vida. Criando oportunidades de aprender, compartilhar, registrar, remixar. Agentes do conhecimento colocam a dúvida na rotina, como um recurso, uma ação construtiva de questionamento, que move o trabalho para a frente, de forma criativa e engajadora.

Agir também no sentido de colocar o conhecimento em prática, testando, criando conexões, novas sínteses, experimentando jeitos diferentes de fazer. Em um processo contínuo mas não descuidado — tem ganhos de aprendizagem conscientes e intencionais.

Mas e como?! Um framework possível.

Incrível o Inevitável. Leia o livro e aumente exponencialmente a quantidade de insights sobre este novo contexto. Só que isso aumenta também aquela angústia básica: o que fazer afinal?!

Quando encontrei nesta internet o consultor canadense Harold Jarche deu aquele alento — ele conceitua e cria parâmetros que ajudam bastante a tornar realidade as coisas etéreas que a gente imagina.

Jarche tem como lema:

o trabalho é a aprendizagem, e a aprendizagem é o trabalho”.

Jarche em foto de seu site.

Ele defende a ideia de que vivemos em “beta perpétuo” e nosso trabalho é criar sentido dentro desta condição. Para tanto, criou e dissemina o conceito de Personal Knowledge Mastery (PMK), algo como maestria ou domínio do conhecimento pessoal — que Jarche define como

“um conjunto de processos, construídos individualmente, para ajudar cada um de nós a entender o mundo e a trabalhar com mais eficiência”.

A maestria a que ele se refere, porém, não é apenas o aperfeiçoamento individual. Para Jarche, o compartilhamento do conhecimento é integrante essencial do processo de aprendizagem e trabalho:

“Por ser tão difícil representar nosso conhecimento para os outros, temos de fazer todos os esforços para compartilhá-lo continuamente. Uma vez não basta, como a maioria dos pais sabe. O conhecimento compartilhado nos fluxos ao longo do tempo pode nos ajudar a criar melhores imagens mentais do que uma única peça de estoque de conhecimento, como um livro”.

Por isso, o framework do PMK inclui três etapas, em um processo contínuo de buscar, criar sentido e compartilhar (tradução livre para seeking, sensing-making, and sharing).

Imagem do site oficial de Jarche: https://jarche.com/pkm/

“Buscar é descobrir e manter-se atualizado. Construir uma rede de colegas é útil neste sentido. Ela não apenas nos permite “extrair” informações, mas também as envia por fontes confiáveis. Bons curadores são membros valiosos das redes de conhecimento.

Criar sentido é como personalizamos as informações e as usamos. Criar sentido inclui refletir e colocar em prática o que aprendemos. Muitas vezes, exige experimentação, pois aprendemos melhor fazendo.

Compartilhar inclui trocar recursos, ideias e experiências com nossas redes, além de colaborar com nossos colegas”.

(leia o original aqui)

Em seu artigo “Os Melhores Líderes são Aprendizes Constantes”, publicado em conjunto com Kenneth Mikkelsen em 2015 na Harvard Business Review, Jarche afirma que

“se trabalhar é aprender e aprender é trabalhar, a liderança deve ter como objetivo possibilitar o aprendizado(…) A chave é encontrar maneiras de conectar e participar de fluxos de conhecimento que desafiam nosso pensamento e nos permitem descobrir novas maneiras de conectar, colaborar e concluir o trabalho mais rápido, melhor e de forma mais inteligente”.

Para Mikkelsen e Jarche, a vantagem competitiva não está apenas na busca da informação correta, mas também em criar sentido, construir bons relacionamentos e saber compartilhar ideias, usando a tecnologia de forma inteligente.

Um dos mais interessantes e aplicáveis gráficos do PMK (PMK roles) coloca em dois eixos perpendiculares os níveis de criação de sentido e de compartilhamento. O eixo horizontal vai da baixa criação de sentido à alta criação de sentido — da esquerda para a direita. No vertical, de baixo para cima, vamos do baixo compartilhamento para o alto compartilhamento. Assim, definem-se os papeis de cada indivíduo no PMK — e não pela quantidade ou qualidade de conhecimento que buscam ou acumulam.

Imagem do site oficial de Jarche.

No quadrante inferior esquerdo, com baixa criação de sentido e baixo nível de compartilhamento, está o consumidor. No quadrante superior esquerdo, está o conector, aquele que distribui informação sem necessariamente refletir ou colocar em prática. No inferior direito, está o expert ou especialista, que tem um alto nível de significação para o conhecimento, mas baixo nível de compartilhamento. Finalmente, no quadrante superior direito, está o catalisador, que é aquele que se apropria verdadeiramente do conhecimento e o compartilha intensamente.

O catalisador se aproxima do que chamei antes de agente do conhecimento.

Com qual desses perfis você se identifica? E a qual deles associa as pessoas que mais admira?

Sem buscar conhecimento, esse ciclo fica impedido, mas essa é só a primeira etapa. Sem as demais (criar sentido e compartilhar) o ciclo não se cumpre, e o valor real não é criado. Na lógica anterior, busco conhecimento, aplico, gero resultado. Nesta lógica, busco conhecimento, aplico, crio sentido, gero resultados, compartilho conhecimento, crio sentido, busco mais conhecimento, gero resultado, aplico… tudo de forma conectada, constante e não linear.

Sabemos intuitivamente da necessidade de dar sentido e compartilhar o que aprendemos. Se não, que relevância a aprendizagem teria no trabalho? Mas deixamos tais ações acontecerem naturalmente, de modo pouco intencional. Assim, não só deixamos de realizá-las da melhor maneira possível, como lhes damos menos importância do que seria necessário.

Por isso, acreditamos que o aprendiz nos dias de hoje precisa ser múltiplo nos conteúdos a que se dedica (lembrando aquele artigo do Michael Simmons que traduzi) e na forma como se relaciona com a aprendizagem, assumindo para si o papel ativo de compartilhar e construir ambientes para que ela se estabeleça como parte da rotina.

Estamos acostumados a pensar que apenas a primeira parte (buscar conhecimento) é aprendizagem. A segunda (criar sentido) é trabalho. A terceira (compartilhar) é desejável, mas seria menos importante. Precisamos compreender que aprender, ensinar e trabalhar tornaram-se parte de um mesmo processo. E que esse é o processo que gera valor no mundo atual e no futuro. Aprender, cada vez mais, é uma ação de transformação de si mesmo e do contexto.

Isso muda tudo. Dando alguma pista de como seguir.

Não apenas para manter a relevância profissional, mas também como um exercício de cidadania. Quem não compreende o sistema e seus fluxos acaba por ter um campo de escolhas muito limitado em relação à própria vida e uma atuação criativa bastante restrita sobre sua realidade.

Catalisemos conhecimento, coloquemo-nos em ação para construir relações, ambientes e realidades que desejamos.

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